A leitura é realmente um processo natural?
A ideia de que aprender a ler é um processo natural e intuitivo está profundamente enraizada na educação brasileira. No entanto, a ciência cognitiva da leitura nos oferece uma visão mais complexa sobre como o cérebro processa a alfabetização e por que, em muitos casos, a leitura não é um ato instintivo quanto parece. Quando se observa como crianças se desenvolvem e interagem com o mundo ao seu redor, é possível entender que, embora o cérebro humano seja altamente adaptável, a leitura exige habilidades específicas que precisam ser ensinadas e praticadas.
No entanto, a pergunta que surge é: aprender a ler é natural ou adquirido? A resposta não é simples, mas a ciência cognitiva aponta que a leitura é um processo aprendido que depende de uma série de fatores, incluindo o desenvolvimento cognitivo e as estratégias pedagógicas utilizadas para ensinar essa habilidade.
Leitura e Escrita: Uma Invenção Cultural
A leitura e a escrita são frequentemente vistas como habilidades naturais e inatas, mas, na realidade, elas são invenções culturais que surgiram ao longo da história da humanidade como formas de registrar, preservar e transmitir o conhecimento. Ao contrário da fala, a escrita é uma invenção que evoluiu para atender a necessidades sociais e culturais específicas.
Em relação à fala, de acordo com o linguista Noam Chomsky, que introduziu a ideia de ‘gramática humana universal’ em 1975, já nascemos com o potencial para falar. As crianças aprendem a se comunicar ao interagir e estarem expostas à linguagem verbal. O autor afirma que, biologicamente, os cérebros das crianças vêm pré-programados para absorver a linguagem falada, desde que estejam em contato com sua língua materna. Portanto, a aquisição da linguagem é uma habilidade inerente ao cérebro, que não requer ensino formal e não se limita a um processo de aprendizado cultural (BENEDETTI, 2020).
Já a escrita não surgiu de forma espontânea, mas como uma solução para a complexidade das relações humanas e das civilizações que necessitavam de meios para registrar informações e ideias de maneira duradoura. A escrita foi inventada aproximadamente há 5 mil anos (DEHAENE, 2012).
A invenção da escrita transformou a maneira como os seres humanos se relacionam com o mundo. Antes da escrita, o conhecimento era transmitido oralmente, o que limitava sua preservação e a capacidade de compartilhá-lo com outras gerações. A oralidade era efêmera e dependente da memória humana, enquanto a escrita permitia que o conhecimento fosse registrado e transmitido de maneira permanente. Com isso, surgiram novas possibilidades de comunicação, como a literatura, as leis, as filosofias e as religiões, todas as quais precisavam ser registradas para serem compartilhadas com outras pessoas e para garantir sua perpetuação (DEHAENE, 2012).
À medida que a escrita foi se tornando mais difundida, ela passou a se expandir para diferentes camadas da sociedade. A invenção da imprensa no século XV, por exemplo, teve um impacto profundo na disseminação do conhecimento. A impressão de livros em larga escala tornou a leitura acessível a um público mais amplo e não restrito apenas à elite educada. Com isso, a escrita e a leitura tornaram-se mais democráticas, e a alfabetização se tornou uma habilidade fundamental para a participação ativa na sociedade. No entanto, mesmo com a popularização da leitura e da escrita, as práticas de alfabetização continuam sendo influenciadas por fatores culturais, sociais e políticos.
A leitura e a escrita não são apenas habilidades técnicas, mas formas de pensar e de compreender o mundo. A maneira como cada sociedade desenvolve e ensina essas habilidades está profundamente ligada às suas necessidades culturais, sociais e econômicas. Em algumas culturas, a leitura e a escrita são vistas como habilidades essenciais para o desenvolvimento individual e coletivo, enquanto em outras, elas podem ser vistas como menos prioritárias.
A forma como as crianças aprendem a ler e escrever, bem como o tipo de textos que são valorizados, é determinada pelas práticas culturais de cada sociedade. Além disso, a alfabetização vai além da simples decodificação de palavras; ela envolve a capacidade de compreender, interpretar e criticar os textos dentro de um contexto cultural específico.
Portanto, a leitura e a escrita são invenções culturais que surgiram da necessidade de registrar e organizar o conhecimento humano. Elas não são habilidades inatas, mas adquiridas e moldadas pelo contexto histórico e social. A forma como cada cultura desenvolve e utiliza a leitura e a escrita reflete suas necessidades e valores, e essas invenções continuam a evoluir à medida que novas formas de comunicação surgem.
A base biológica da leitura: o cérebro e a alfabetização

Para compreender se aprender a ler é natural, precisamos olhar para o cérebro humano e entender como ele processa a linguagem escrita. A leitura envolve a interação de várias áreas do cérebro, e essa capacidade é desenvolvida ao longo do tempo. As crianças não nascem com a habilidade de ler, mas com a capacidade de aprender, o que torna o processo de alfabetização um fenômeno fascinante.
O cérebro humano é programado para aprender a falar, mas a escrita não é algo natural. O que é natural para o cérebro é a capacidade de aprender a linguagem oral, mas a leitura e a escrita exigem áreas cerebrais adicionais. Nós aprendemos a ler e a escrever devido a neuroplasticidade cerebral, que aceita que circuitos utilizados para outras tarefas sejam ajustadas para adquirir a leitura e escrita. Ou seja, a aprendizagem da leitura e escrita muda estruturas cerebrais (DEHAENE, 2012; SARGIANI, et al., 2022).
A ciência cognitiva afirma que a leitura não é um processo natural, mas uma habilidade que o cérebro adquire à medida que se desenvolve, mediante o ensino explicito e sistemático. Para isso, é necessário um ambiente estimulante e um processo de ensino adequado que ajude a criança a integrar esses novos conhecimentos.
O que a ciência cognitiva diz sobre o desenvolvimento da leitura?
A ciência cognitiva oferece uma perspectiva interessante sobre como as crianças desenvolvem as habilidades de leitura. Ao contrário de habilidades como a fala, que surgem quase de forma automática, a leitura exige ensino explícito e prática constante.
Durante os primeiros anos de vida, as crianças começam a perceber padrões sonoros na fala, o que é essencial para a alfabetização. A consciência fonológica, ou a habilidade de reconhecer e manipular sons de palavras, é um dos primeiros passos fundamentais para a leitura. A ciência cognitiva aponta que essa habilidade é um precursor importante para a aprendizagem da leitura, mas a combinação de outras habilidades cognitivas, como a memória de curto prazo e a atenção, também desempenha um papel crucial (BRASIL, 2019)
Ao abordar a alfabetização, os pesquisadores destacam que a leitura é um processo gradual e que as crianças não começam a entender palavras ou frases completas de imediato. A aprendizagem da leitura se dá em estágios, com cada etapa envolvendo um aumento progressivo de complexidade e habilidades.
A importância do ambiente na aprendizagem de leitura

Embora o cérebro humano tenha a capacidade de aprender a ler, é o ambiente de aprendizagem que influencia diretamente esse processo. Crianças que crescem em um ambiente rico em linguagem – com livros acessíveis, interações frequentes com os pais e estímulos verbais – têm maior probabilidade de desenvolver habilidades de leitura mais rapidamente.
A ciência cognitiva sublinha que o ambiente em que uma criança cresce pode acelerar ou retardar o processo de alfabetização, é o que chamamos de Efeito Mateus, se quiser saber mais sobre o assunto, leia este artigo da pesquisadora Alessandra Seabra, clique aqui!
Além disso, a exposição precoce à leitura, como a leitura de livros, histórias e até mesmo rimas, é vital para que a criança perceba a relação entre símbolos escritos e sons. Para muitas crianças, a leitura se torna um processo fluido e natural quando as bases fonológicas e o entendimento de como as palavras funcionam são solidificados desde cedo.
Como o cérebro processa a alfabetização: uma visão neurocientífica
A maneira como o cérebro processa a leitura é complexa, mas a ciência cognitiva fez grandes avanços na compreensão dos processos envolvidos. O cérebro não é “programado” para ler, mas desenvolve a habilidade ao longo do tempo, com base em como as letras e os sons se conectam.
De acordo com Dehaene (2012), no córtex, estão localizados os neurônios mais adequados para a leitura. Em particular, nos seres humanos, a região que se ativa é o córtex occipitotemporal esquerdo.
Ao aprender a ler, o cérebro começa a fazer associações entre as palavras faladas e as palavras escritas, ou seja, que a escrita representa a fala. Um exemplo claro disso é o processo de decodificação, que envolve a capacidade de reconhecer palavras e frases à medida que as lemos. Esse processo é muito importante, pois ele permite que as crianças leiam palavras que nunca viram antes, utilizando o conhecimento fonológico que adquiriram.
Uma vez que a criança decodifica as palavras, outra parte do cérebro entra em ação: a área de compreensão. Esta área é responsável por entender o significado das palavras e frases. A transição de um processo mecânico de leitura para uma compreensão fluida é essencial para a alfabetização bem-sucedida.
Dehaene (2012) aponta a importância do ensino das correspondências entre grafemas e fonemas, que devem ser ensinados de maneira explícita e com repetição, para que haja a consolidação do aprendizado.
Estratégias baseadas na ciência para facilitar o aprendizado de leitura

Embora a leitura não seja uma habilidade inata, no sentido de que não ocorre naturalmente, existem estratégias baseadas na ciência cognitiva que podem tornar o aprendizado mais eficiente e acessível para as crianças. Os relatórios internacionais NELP (National Early Literacy Panel, 2009) e NPR (National Reading Panel, 2000) apresentam o que as evidências científicas apontam como mais eficaz.
Se desejar saber mais sobre os relatórios mencionados acima, clique aqui!
1. Ensinar a consciência fonológica
A consciência fonológica é a habilidade de reconhecer e manipular sons nas palavras (BRASIL, 2019). A ciência cognitiva indica que as crianças que possuem uma boa base em consciência fonológica tendem a ter mais sucesso no aprendizado da leitura.
A consciência fonológica é um conjunto de habilidades fundamentais para o desenvolvimento da leitura e da escrita. Entre elas, destaca-se a consciência de rimas e aliterações, que envolve a capacidade de identificar sons semelhantes no final de palavras (rimas) ou no início delas (aliterações). A consciência de frases e palavras permite que a criança perceba a estrutura da linguagem, reconhecendo as frases e distinguindo palavras individuais.
Já a consciência silábica envolve a habilidade de identificar e manipular as sílabas nas palavras, como segmentá-las ou combiná-las. Por fim, a consciência fonêmica, que é o nível mais avançado da consciência fonológica, permite que a criança identifique e manipule os fonemas, os menores sons da fala. Essas habilidades são essenciais para que a criança desenvolva a capacidade de ler e escrever com fluência (BRASIL, 2019).
2. Ensinar de forma explícita a correspondência entre fonemas e grafemas
A correspondência entre os sons das palavras (fonemas) e suas representações gráficas (grafemas) é outro aspecto essencial para a alfabetização. Métodos como o ensino de fonemas e grafemas, onde as crianças aprendem a associar letras e sons, têm mostrado ser eficazes em pesquisas científicas.Os métodos fônicos são os que apresentam maior validade científica na alfabetização (MORAIS, 2013).
3. Incentivar a prática de leitura regular
A prática constante é fundamental para que o aprendizado da leitura se torne mais fluido. Leitura diária, com a orientação adequada, permite que a criança automatize o processo de decodificação e melhore sua fluência na leitura.
4. Criar um ambiente de aprendizagem estimulante
Um ambiente rico em livros e atividades literárias ajuda a fortalecer a conexão entre a escrita e o mundo ao redor. A exposição frequente a textos variados e a leitura interativa contribuem para uma aprendizagem mais eficaz, facilitando o desenvolvimento natural da leitura.
Conclusão: A leitura é natural ou precisa ser aprendida?
Embora a leitura não seja uma habilidade natural no sentido biológico, o cérebro humano possui a capacidade de aprender a ler, desde que receba o ensino adequado, ou seja, explicito e sistemático. A ciência cognitiva revela que o processo de alfabetização é complexo e envolve várias etapas de desenvolvimento. Entretanto, ao criar um ambiente de aprendizagem que apoie esse desenvolvimento, podemos facilitar o processo de alfabetização, tornando-o mais acessível e eficiente para as crianças.
A leitura pode não ser um ato “natural”, mas, com base nos estudos cognitivos, sabemos que, quando corretamente orientada, a aprendizagem da leitura se torna uma habilidade acessível a todos.
Querido leitor, acredito que você já tenha tido essa dúvida. No entanto, a ciência cognitiva da leitura mostra que a leitura não é uma habilidade adquirida de maneira natural, mas sim que necessita de ensino para se desenvolver. Agradeço por estar lendo este artigo e ficarei muito feliz se puder compartilhar nos comentários suas experiências, tanto na sala de aula quanto em casa. Abraço!
Referências
BENEDETTI, Katia Simone. A falácia socioconstrutivista. 1. ed. São Paulo: Kirion, 2020.
DEHAENE, Stanislas. Os neurônios da leitura: como a ciência explica a nossa capacidade de ler. Porto Alegre. Penso. 2012.
MORAIS, J. Criar leitores: para professores e educadores. São Paulo: Manole, 2013.
NATIONAL EARLY LITERACY PANEL. Developing Early Literacy: Report of the National Early Literacy Panel. A Scientific Synthesis of Early Literacy Development and Implications for Intervention. Washington: National Institute for Literacy, 2009.
NATIONAL READING PANEL. Teaching Children to Read: An Evidence-Based Assessment of the Scientific Research Literature on Reading and Its Implications for Reading Instruction. Rockville: NIH Publication, 2000.
SARGIANI, R. Alfabetização baseada em evidências: como a ciência cognitiva da leitura contribui para as práticas políticas educacionais de literacia. In: SARGIANI, R. Alfabetização baseada em evidências: da ciência à sala de aula. Porto Alegre: Penso, 2022.