Imagine uma criança transformando uma simples caixa de papelão em uma nave espacial ou brincando de dar comida para as bonecas. Essas cenas, tão comuns na infância, vão muito além de momentos de diversão. Elas são exemplos de brincadeiras simbólicas, uma atividade poderosa que estimula a imaginação e, mais do que isso, atua como um motor para o desenvolvimento da linguagem infantil. Mas como algo tão simples pode ter um impacto tão profundo? Neste artigo, vamos explorar o que são as brincadeiras simbólicas, por que elas são essenciais para o aprendizado das crianças e como os pais podem usá-las para acelerar o desenvolvimento linguístico dos pequenos.
O que São Brincadeiras Simbólicas?
Os jogos simbólicos ou brincadeiras simbólicas, também chamados de brincadeiras de faz de conta, são uma forma essencial de expressão e desenvolvimento infantil. Nesse tipo de atividade, a criança utiliza a imaginação para representar situações do cotidiano, imitando ações, papéis e objetos de maneira simbólica. Desde brincar de casinha até fingir ser um super-herói, essas interações desempenham um papel fundamental no crescimento cognitivo, emocional e social dos pequenos.
O Desenvolvimento das Brincadeiras Simbólicas (ORR e GEVA, 2014).1
A brincadeira de caráter simbólico tem início em uma fase pré-simbólica, momento em que os bebês conseguem identificar a conexão concreta entre objetos conhecidos e as ações a eles associadas (como, por exemplo, utilizar uma xícara para simular o ato de beber). Normalmente, a passagem para a brincadeira simbólica torna-se perceptível quando o bebê passa a empregar sons ou movimentos que sugerem os comportamentos correspondentes (como inclinar a cabeça para trás ao “beber”).
Com o avanço da capacidade simbólica, os bebês ganham maior habilidade para integrar representações mentais de diferentes relações entre significante e significado, organizando-as em sequências ou em uma estrutura hierárquica (por exemplo, simular o ato de mexer algo e depois “alimentar” uma boneca com um graveto). Os bebês alcançam o estágio pré-simbólico entre os 8 e 11 meses de idade, sendo o primeiro sinal claro da brincadeira simbólica geralmente observado por volta dos 11 a 12 meses.
O progresso da linguagem

A linguagem, semelhante ao jogo simbólico, tem origem em estruturas simples. O desenvolvimento linguístico inicia-se com o balbucio, que consiste em vocalizações marcadas pela repetição de sílabas, como “bababa”. Esse estágio é visto como um marco fundamental no avanço inicial da linguagem, manifestando-se, na maioria dos bebês com desenvolvimento típico, antes da habilidade de falar, geralmente antes dos 10 meses. A fala é entendida como uma evolução natural do balbucio, conforme sugerem estudos (ORR e GEVA, 2014 apud PETITTO, HOLOWKA, LAUREN, LEVY E OSTRY, 2004). Após essa etapa, surge a produção de frases com uma única palavra, uma mudança que costuma ocorrer por volta dos 12 meses.
Contudo, a ideia de que o balbucio funciona apenas como um precursor da fala tem sido debatida. Isso porque ele também está associado a movimentos motores rítmicos, como os gestos repetitivos dos braços que acompanham as vocalizações. Nessa perspectiva, o balbucio pode ser interpretado como uma forma de experimentação vocal, destinada a aprimorar as habilidades motoras necessárias para a fala.
McCune (1995 apud Orr e Geva, 2014) destacou que as transições no desenvolvimento da linguagem nas crianças ocorrem simultaneamente ou após avanços representacionais equivalentes observados nas brincadeiras. Por exemplo, crianças capazes de realizar sequências organizadas em suas brincadeiras, como misturar o leite e depois dar comida a uma boneca, também demonstram capacidade de formar estruturas sintáticas na linguagem, como “Quero lápis e papel”. Assim, McCune (1995 apud Orr e Geva, 2014) identificou uma relação paralela entre o progresso da brincadeira simbólica e o da linguagem.
A Conexão Entre Brincadeiras Simbólicas e Linguagem

A linguagem é uma das ferramentas mais incríveis que os seres humanos possuem. Ela nos permite expressar pensamentos, compartilhar histórias e construir relações. Mas como as crianças aprendem algo tão complexo? A resposta está, em parte, nas brincadeiras simbólicas. Quando uma criança finge que está cozinhando um jantar para suas bonecas, ela não está apenas brincando – está praticando habilidades linguísticas essenciais.
A brincadeira simbólica, ou brincadeira de faz de conta, e a linguagem estão inter-relacionadas. Ambas baseiam-se da capacidade de representação, ou seja, do emprego de um elemento como significante para representar outro elemento. Na brincadeira de faz de conta, os objetos ou situações são usados ou realizados de uma forma que não na realidade imediata, enquanto na linguagem, um símbolo vocal (uma palavra) representa um significado interno que está relacionado a elementos ou eventos no mundo real. Ademais, ambos os comportamentos, a brincadeira de faz de conta e a linguagem, partilham uma estrutura de desenvolvimento semelhante, prosseguindo das formas mais básicas para as mais avançadas (ORR e GEVA, 2014).
Pesquisas mostram que o “faz de conta” estimula o desenvolvimento da linguagem de várias maneiras. Primeiro, ele incentiva o uso de vocabulário novo. Durante a brincadeira, as crianças experimentam palavras que ouviram dos adultos ou de outras crianças, aplicando-as em contextos criativos. Por exemplo, ao brincar de médico, uma criança pode dizer “preciso de um estetoscópio” ou “vou fazer um curativo”, mesmo que ainda não entenda completamente o significado dessas palavras. Esse processo de tentativa e erro é fundamental para a expansão do repertório linguístico.
Além disso, as brincadeiras simbólicas promovem a narrativa. Quando uma criança cria uma história – como um dragão que invade um castelo ou um astronauta explorando Marte –, ela organiza seus pensamentos em uma sequência lógica, com início, meio e fim. Essa habilidade narrativa é diretamente ligada à compreensão e produção de frases mais complexas, um passo crucial no desenvolvimento da linguagem.
Outro ponto importante é a interação social. Muitas vezes, o “faz de conta” acontece em grupo, seja com amigos, irmãos ou pais. Nessas situações, as crianças precisam se comunicar para negociar papéis (“eu sou o rei, você é o cavaleiro”) e avançar a brincadeira. Essa troca verbal aprimora a pragmática – a capacidade de usar a linguagem de forma socialmente apropriada – e fortalece a compreensão de regras conversacionais, como esperar a vez de falar.
O Que a Ciência Diz Sobre Isso?
O artigo de Orr e Geva (2014) destaca que existe uma relação direta entre o nível de sofisticação das brincadeiras simbólicas e o progresso linguístico. Crianças que demonstram maior habilidade em criar cenários imaginários complexos tendem a ter vocabulários mais ricos e a formar frases mais elaboradas. Isso acontece porque o simbolismo da brincadeira e o simbolismo da linguagem compartilham a mesma base cognitiva: a capacidade de abstração.
Outro aspecto interessante é o papel das brincadeiras simbólicas no desenvolvimento da teoria da mente – a capacidade de entender que outras pessoas têm pensamentos e sentimentos diferentes dos nossos. Quando uma criança brinca de “escola” e assume o papel da professora enquanto seu amigo é o aluno, ela precisa imaginar o que a “professora” diria ou faria. Esse exercício mental está intimamente ligado à linguagem, pois depende da habilidade de verbalizar intenções e emoções, tanto próprias quanto alheias.
Por Que as Brincadeiras Simbólicas São o “Segredo”?

Chamar as brincadeiras simbólicas de “segredo” pode parecer exagero, mas elas têm um poder único: combinam diversão e aprendizado de forma natural. Diferente de métodos formais, como aulas de vocabulário ou exercícios de gramática, o “faz de conta” não exige esforço consciente. A criança aprende enquanto se diverte, sem perceber que está desenvolvendo habilidades cruciais para a vida.
Além disso, essas brincadeiras são acessíveis. Não é preciso brinquedos caros ou tecnologia avançada – uma vassoura pode virar um cavalo, e uma toalha pode ser um mar. Isso torna o “faz de conta” uma ferramenta democrática, disponível para famílias de todas as condições sociais. O que importa é a imaginação, e as crianças têm isso de sobra.
Outro motivo é a flexibilidade. As brincadeiras simbólicas se adaptam ao estágio de desenvolvimento de cada criança. Um bebê de 18 meses pode fingir que bebe água de uma xícara vazia, enquanto uma criança de 4 anos pode inventar uma aventura épica com personagens e diálogos detalhados. Em ambos os casos, a linguagem está sendo estimulada, mas de acordo com o ritmo individual.
Como os Pais Podem Incentivar as Brincadeiras Simbólicas?
Segundo Weisberg2 et al. (2013) a interação com adultos atentos e responsivos durante as brincadeiras cria um ambiente rico e estimulante que favorece o aprimoramento das habilidades linguísticas. Esse impacto é ainda mais evidente na chamada brincadeira guiada, na qual os adultos oferecem suporte e orientação voltados para um objetivo de aprendizado, mas permitem que a criança lidere a atividade, seguindo seus próprios interesses. Essa abordagem combina liberdade e estrutura, proporcionando um cenário ideal para o crescimento da linguagem.
A presença ativa do adulto não significa controle total, mas sim um acompanhamento que incentiva a exploração e a comunicação. Quando os adultos participam de forma engajada, respondendo às iniciativas da criança e interagindo de maneira sensível, eles ajudam a criar situações que estimulam o uso da linguagem de forma natural e significativa. Isso é essencial, pois a brincadeira, por si só, reúne elementos que promovem o desenvolvimento linguístico, como a troca de ideias, a narrativa e a experimentação com palavras, e a participação adulta potencializa esses benefícios.
Além disso, as evidências sugerem que crianças que brincam com adultos que as apoiam nesse processo conseguem resultados de aprendizado tão bons quanto os obtidos em atividades mais dirigidas, mas com a vantagem de se divertirem genuinamente. Assim, os adultos não apenas facilitam o aprendizado da linguagem, mas também tornam o processo mais prazeroso e alinhado aos interesses da criança, o que pode aumentar sua motivação e engajamento.
Se as brincadeiras simbólicas são tão importantes, o que os pais podem fazer para promovê-las? A boa notícia é que não é preciso ser um especialista em desenvolvimento infantil. Pequenas ações no dia a dia já fazem uma grande diferença. Aqui estão algumas dicas práticas:
Participe da brincadeira
Entre no mundo imaginário da criança. Se ela está brincando de loja, seja o cliente e faça perguntas como “quanto custa essa maçã?” ou “você tem algo mais gostoso?”. Isso incentiva a criança a responder e usar a linguagem de forma criativa.
Ofereça materiais simples
Brinquedos muito estruturados, como aqueles com botões e sons prontos, podem limitar a imaginação. Prefira objetos versáteis, como blocos de montar, caixas, tecidos ou utensílios de cozinha (seguros, claro!). Eles dão liberdade para a criança criar seus próprios cenários.
Faça perguntas abertas
Durante a brincadeira, pergunte coisas como “o que o pirata vai fazer agora?” ou “onde o foguete vai pousar?”. Essas questões estimulam a criança a pensar e verbalizar suas ideias.
Leia histórias
Livros infantis são uma fonte rica de inspiração para o “faz de conta”. Depois de ler sobre um castelo encantado, por exemplo, sugira que vocês construam um juntos e inventem uma aventura.
Benefícios Além da Linguagem
Embora o foco deste artigo seja o desenvolvimento da linguagem, vale destacar que as brincadeiras simbólicas trazem outros benefícios. Elas estimulam a criatividade, a resolução de problemas e a empatia. Uma criança que brinca de “médico” aprende a cuidar do outro, enquanto outra que inventa uma história de detetive exercita o raciocínio lógico. Esses ganhos se somam ao progresso linguístico, preparando a criança para os desafios escolares e sociais.
Conclusão: Brincadeiras Simbólicas – O Poder do “Faz de Conta”

As brincadeiras simbólicas são muito mais do que um passatempo. Elas são uma ponte entre a imaginação e a linguagem, ajudando as crianças a transformar pensamentos em palavras e ideias em histórias. A ciência confirma: o “faz de conta” acelera o desenvolvimento linguístico, enriquece o vocabulário e prepara os pequenos para se comunicar com o mundo. E o melhor? Tudo isso acontece de forma espontânea, divertida e acessível.
Então, da próxima vez que seu filho transformar uma almofada em um trono ou um lápis em uma espada, celebre! Ele não está apenas brincando – está construindo as bases para se expressar, aprender e se conectar. Que tal entrar na brincadeira e descobrir juntos a magia das palavras?
Referências
- ORR, E.; GEVA, R. Symbolic play and language development. Infant Behavior and Development, 38, 147-161, 2015. DOI:10.1016/j.infbeh.2015.01.002
↩︎ - WEISBERG, Deena Skolnick; ZOSH, Jennifer M.; HIRSH-PASEK, Kathy; GOLINKOFF, Roberta Michnick. Talking It Up: Play, Language Development, and the Role of Adult Support. American Journal of Play, Rochester, v. 6, n. 1, p. 39-54, 2013. ↩︎