Desde os primeiros anos de vida, os pequenos observam e imitam os comportamentos dos adultos ao seu redor, especialmente daqueles que exercem o papel de cuidadores primários. Mas o que acontece quando esses modelos de comportamento, os pais, mentem? Estudos recentes, como o publicado na Journal of Experimental Child Psychology em 2024 por Low, Kyeong e Setoh1, sugerem que a mentira parental pode ter impactos profundos na formação da honestidade, moldando não apenas a percepção que as crianças têm da verdade, mas também seus próprios padrões de comportamento ético.
Este artigo explora como os pais que mentem — seja por conveniência, para proteger os filhos ou até mesmo sem intenções claras — podem, sem saber, ensinar às crianças que a desonestidade é uma ferramenta aceitável. Vamos analisar os mecanismos psicológicos por trás desse aprendizado, os diferentes tipos de mentiras parentais, seus efeitos no desenvolvimento infantil e o que os pais podem fazer para promover uma cultura de honestidade em casa.
O Que a Ciência Diz Sobre Pais Que Mentem?
A Contradição Entre Valores e Práticas
De acordo com Low et al (2024), a honestidade é um valor social altamente estimado, sendo frequentemente cultivado pelos pais durante o processo de formação moral de seus filhos. No entanto, mesmo valorizando essa virtude, muitos pais recorrem ocasionalmente à mentira ao lidar com as crianças, o que pode transmitir mensagens contraditórias sobre a importância e a aplicação da honestidade.
Quando os filhos percebem essas inverdades por parte dos pais, acabam aprendendo, de forma implícita, que mentir pode ser aceitável em determinadas situações. Pesquisas indicam que a exposição frequente a essas mentiras parentais pode aumentar a probabilidade de as crianças também adotarem comportamentos desonestos. Além disso, a forma como os filhos interpretam essas atitudes dos pais pode influenciar significativamente os efeitos dessas experiências em seu desenvolvimento moral. Ou seja, a percepção que a criança tem sobre as mentiras contadas a ela pode desempenhar um papel crucial na maneira como ela compreende e manifesta a prática da mentira.
O estudo realizado por Low, Kyeong e Setoh (2024), intitulado “Parenting by lying and children’s lying to parents: The moderating role of children’s beliefs”, investigou como a exposição a mentiras contadas pelos pais induz o comportamento das crianças. Os pesquisadores descobriram que, quando os pais mentem de forma intencional — mesmo em situações aparentemente inofensivas, como prometer algo que não pretendem cumprir —, as crianças tendem a replicar esse comportamento. Em um dos experimentos, crianças que observaram adultos mentindo foram mais propensas a mentir em tarefas subsequentes, em comparação com aquelas que interagiram com adultos honestos.
Esse achado reforça que: as crianças aprendem mais pelo exemplo do que pelas palavras. Quando os pais mentem, mesmo que seja algo pequeno como dizer “vamos ao parque depois” sem intenção real de ir, estão enviando uma mensagem implícita de que a verdade pode ser flexível. Esse padrão pode se enraizar na mente infantil, levando-as a acreditar que mentir é uma estratégia válida para lidar com situações difíceis ou alcançar objetivos.
Como as Crianças Processam as Mentiras dos Pais?

O Papel da Observação na Aprendizagem
Crianças não são simplesmente receptoras passivas de informações, elas são observadoras ativas, tentando compreender as regras do mundo. Os comportamentos são aprendidos por meio da observação e imitação de modelos, especialmente aqueles com autoridade, como os pais. Quando os pais mentem, as crianças não apenas notam a ação, mas também tentam entender o “porquê” por trás dela.
Por exemplo, uma criança que ouve a mãe dizer ao telefone “Diga que não estou em casa” pode interpretar isso como uma permissão tácita para mentir em situações semelhantes. Aos poucos, elas começam a testar essas estratégias em suas próprias interações, seja com amigos, professores ou até mesmo com os próprios pais.
Além disso, a capacidade das crianças de detectar mentiras aumenta com a idade. Por volta dos 5 anos, elas já começam a perceber inconsistências entre o que os pais dizem e o que fazem. Se os pais mentem frequentemente e são “pegos” nisso, a confiança na relação pode ser abalada, levando a criança a questionar não apenas a veracidade das palavras dos pais, mas também a importância de ser honesto.
Os Efeitos de Longo Prazo na Honestidade Infantil
Da Infância à Adolescência
Os impactos das mentiras parentais não se limitam à infância. Quando os pais mentem de forma recorrente, estão plantando sementes que podem germinar em comportamentos desonestos na adolescência e na vida adulta.
Esse efeito é ainda mais pronunciado quando os pais mentem sobre questões éticas ou morais. Por exemplo, se uma criança vê o pai trapaceando em um jogo e justificando com “é só uma brincadeira”, ela pode internalizar que as regras podem ser quebradas dependendo da situação. Esse relativismo moral pode se traduzir em decisões mais graves no futuro, como colar em provas ou mentir em relações pessoais.
Adolescência e Relações Familiares
Durante a adolescência, o ato de mentir para os pais adquire um significado especial, já que as mentiras tendem a se tornar mais elaboradas e frequentes nesse período do desenvolvimento (ENGELS et al., 2006 apud LOW, 2024). Embora o comportamento de mentir surja por volta dos 3 anos de idade, a forma como as crianças compreendem e avaliam a mentira evolui ao longo da infância e da adolescência. Essa progressão está ligada ao amadurecimento cognitivo, ao desenvolvimento de habilidades sociais e à internalização de valores morais (Gingo et al., 2020; Heyman et al., 2019 apud LOW, 2024).
Além disso, o hábito de mentir na adolescência pode sinalizar tanto dificuldades no comportamento quanto fragilidades no relacionamento com os pais, especialmente quando há falhas na comunicação.
Estudos mostram que adolescentes que mentem com mais frequência tendem a apresentar mais comportamentos inadequados e a reconhecer menos a autoridade e legitimidade dos pais (DARLING et al., 2006 apud LOW, 2024). A prática recorrente de mentir também compromete estratégias parentais importantes, como o monitoramento e a supervisão, os quais são essenciais para prevenir condutas de risco entre os jovens (STATTIN & KERR, 2000 apud LOW, 2024). Esses fatores ressaltam a relevância de se investigar o comportamento de mentir no contexto das interações entre pais e filhos.
A Contradição da Educação Moral

Muitos pais ensinam aos filhos que “mentir é errado”, mas contradizem esse ensinamento com suas atitudes. Essa dissonância entre discurso e prática é especialmente prejudicial porque as crianças tendem a dar mais peso ao que veem do que ao que ouvem, como já mencionado acima. Quando os pais mentem, mesmo que seja para evitar um confronto ou simplificar uma explicação, estão minando a própria mensagem que tentam passar.
Imagine uma mãe que diz ao filho “Sempre diga a verdade, não importa o quê”, mas logo depois mente ao chefe sobre estar doente para tirar um dia de folga. A criança, que observa tudo, pode concluir que a honestidade é um ideal bonito, mas impraticável. Esse tipo de aprendizado implícito é mais difícil de desfazer do que os ensinamentos verbais, pois está enraizado em experiências reais.
Como Promover a Honestidade em Casa?
Como temos visto, crianças que percebem comportamentos desonestos por parte dos pais tendem a apresentar maior inclinação à desonestidade (HAYS & CARVER, 2014 apud LOW, 2024). Da mesma forma, jovens adultos que se recordam das mentiras contadas por seus pais demonstram uma maior propensão a mentir para eles (DODD & MALM, 2023; SANTOS ET AL., 2017; SETOH ET AL., 2020 apud LOW, 2024). Isso sugere que a forma como as crianças interpretam e acreditam nas mentiras parentais pode influenciar — ou até mesmo potencializar — o impacto dessas mentiras sobre seu próprio comportamento.
Ou seja, os pais que mentem influenciam negativamente a honestidade dos filhos. Mas, o que pode ser feito para reverter esse ciclo?
Estratégias para Cultivar a Verdade
Aqui estão algumas estratégias baseadas em evidências científicas e práticas parentais eficazes:
- Modele a Honestidade: seja um exemplo consistente. Se precisar dizer não a uma promessa, explique o motivo em vez de inventar uma desculpa. Crianças respeitam a transparência mais do que imaginamos.
- Reforce a Verdade Positivamente: elogie a criança quando ela escolhe ser honesta, mesmo em situações difíceis. Isso cria uma associação positiva com a honestidade.
- Admita Erros: se for pego em uma mentira, peça desculpas e explique por que errou. Essa atitude indica que a honestidade abrange assumir responsabilidades.
- Crie um Ambiente Seguro para a Verdade: crianças mentem menos quando sentem que não serão punidas severamente por dizer a verdade, mesmo que ela revele um erro.
Conclusão: A Verdade Como Herança
Pais que mentem, muitas vezes, não percebem o peso de suas palavras e ações no desenvolvimento moral de seus filhos. O estudo de Low et al. (2024) mostram que a mentira parental não é apenas um ato isolado, mas uma lição que as crianças carregam consigo. Se queremos criar uma geração de indivíduos honestos, confiáveis e éticos, precisamos começar em casa, com a escolha consciente de priorizar a verdade — mesmo quando ela é inconveniente.
A honestidade infantil não é um traço inato; ela é cultivada no dia a dia, nas pequenas interações entre pais e filhos. Quando os pais mentem, os filhos aprendem que a verdade é negociável. Mas quando os pais escolhem a sinceridade, eles oferecem às crianças algo muito mais valioso: um modelo de integridade que pode durar a vida toda.
Querido leitor, nós somos exemplos para nossos filhos e também para nossos alunos, não é mesmo? Precisamos ser modelo de verdade, pois nossas ações se refletem nos nossos pequenos. O que você pensa a respeito desse assunto? Ficarei muito feliz com seu comentário! Um grande abraço!
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Referências
- LOW, Petrina Hui Xian; KYEONG, Yena; SETOH, Peipei. Parenting by lying and children’s lying to parents: The moderating role of children’s beliefs. Journal of Experimental Child Psychology, [S.l.], v. 239, p. 105837, jan. 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.jecp.2023.105837. Acesso em: 14 abr. 2025. ↩︎